"Os portugueses amam a sua língua"
No Dia Internacional da Língua Materna a Hall Paxis conversa com Fátima Santos, professora de português há três décadas na Escola Secundária com 3º Ciclo D. Manuel I, em Beja. A nossa convidade acumula a profissão docente com a atividade de formadora de didática específica do português e é coautora de manuais escolares e de livros de apoio ao estudo. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas - Estudos Portugueses, o currículo de Fátima Santos regista também um mestrado em Estudos Lusófonos.
Nesta entrevista, Fátima Santos assume que não é opositora ao polémico Acordo Ortográfico e diz que as novas gerações de portugueses, de uma forma geral, dominam a sua língua materna. Boas notícias, portanto...
Pedia-lhe, antes de mais, uma breve apresentação do seu currículo profissional e académico.
Bem, sobre este assunto, começo por lhe dizer que sou orgulhosamente alentejana, nasci em Odemira, mas sinto-me de Beja, cidade onde gosto muito de viver e onde tenho permanecido a maior parte da minha vida. Por outro lado, Ermidas-Sado foi o espaço da minha infância, pelo qual também tenho muito carinho.
Sou professora de Português há trinta e dois anos, trinta dos quais na Escola Secundária com 3º Ciclo D. Manuel I, em Beja. Nesta instituição, tenho lecionado vários níveis de ensino, 3º ciclo, secundário, cursos profissionais, ensino especial e tenho desempenhado alguns cargos, nomeadamente, diretora de turma, coordenadora dos diretores de turma, orientadora de estágios de professores, coordenadora de departamento, coordenadora do plano interno de formação, entre outros. Paralelamente ao exercício da profissão docente, tenho sido formadora de didática específica do português, coautora de manuais escolares e de livros de apoio ao estudo...
Quanto ao percurso académico, sempre entendi que a formação ao longo da vida é extremamente importante... Por isso, após a conclusão da licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses, na Universidade Nova de Lisboa, em 1985, fiz uma pós-graduação em Supervisão Pedagógica, na Universidade Aberta, o mestrado em Estudos Lusófonos, na Universidade de Évora e a parte curricular do doutoramento em Liderança Educacional, na UAB... Tenho feito muitas outras formações de curta duração e aguardo calmamente ter vontade para concluir o doutoramento...
De uma forma geral, considera que os portugueses tratam bem a sua língua materna?
Creio que os portugueses amam a sua língua, como amam a sua bandeira ou a sua pátria. Porém, a língua portuguesa nem sempre é bem tratada, o que talvez aconteça em outros países, porque, neste mundo globalizado, estamos sempre na emergência da rapidez de fazer e consumir, pelo que escrevemos e lemos tudo muito depressa e nem sempre com o tempo necessário de reflexão para revermos o que escrevemos ou pensar no que lemos...
Como, e em que fase da sua vida, começou a despertar-lhe o interesse para o estudo da língua portuguesa?
Sinceramente, tenho alguma dificuldade em responder-lhe... Sempre gostei muito de ler e, na adolescência, devorei muitas das obras dos clássicos portugueses. Era assim que o tempo de férias era ocupado e lembro-me que, com 15/16 anos, li muitas das obras de Eça de Queirós, escritor pelo qual me apaixonei e que, para mim, continua a ser incontornável... Fui para Estudos Portugueses, porque foi uma das opções de candidatura ao ensino superior, embora não tivesse sido a primeira... Porém, quando comecei a lecionar, a maturidade e a responsabilidade, que então comecei a ter, levaram-me a um fascínio muito grande pela minha profissão e o meu espaço de eleição é a sala de aula.
É professora de português há muitos anos. As crianças e os jovens de hoje estão a ganhar ferramentas que os ajudem a ser bons falantes da língua portuguesa no futuro?
Sim, os programas de português contemplam o desenvolvimento de várias competências, designadamente a oralidade. Por isso, os alunos realizam tarefas que possibilitam a aprendizagem do oral formal e, em geral, têm um bom desempenho. Há alguns jovens que são mais relutantes à exposição perante a turma, os programas são extensos e o número de horas atribuído para a disciplina é reduzido para desenvover todas as competências nucleares, como seria desejável... No entanto, os professores são grandes “artistas e malabaristas”... Por isso, vão ultrapassando os obstáculos e a prova é que os resultados das avaliações externas (exames nacionais) e internacionais (por exemplo, o PISA) têm melhorado. A implementação dos programas de português para o ensino secundário, em 2002, foi o início de várias mudanças nos métodos e estratégias de ensino. Atualmente, a alteração do programa, por parte da tutela anterior, trouxe alguns constrangimentos que se prendem, sobretudo, com a dificuldade de gerir o tempo de modo a que seja possível continuar a privilegiar atividades de escrita e de oralidade, na sala de aula.
As novas tecnologias da comunicação, as redes sociais ou as sms trouxeram com elas alterações perigosas à forma como escrevemos. É frequente encontrar expressões típicas da "rede" nos testes que corrige?
Como referi, a rapidez com com escrevemos e lemos acaba por trazer alguns constrangimentos, porque conduz à dificuldade de desenvolver um racíocinio e de argumentar convincentemente em defesa de uma opinião, por exemplo. No entanto, as tecnologias são um ótimo recurso, se forem usadas para transformar o trabalho de pesquisa em conhecimento e para comunicar e interagir. Relativamente às abreviaturas, os alunos sabem que não as podem usar nos momentos de avaliação formal e esse problema, quando surge, vai-se ultrapassando...
Qual é a sua opinião acerca das alterações ao acordo ortográfico?
Eu nunca me opus ao Acordo Ortográfico, porque o seu objetivo primordial é o de que a língua portuguesa tenha a mesma ortografia em todos os países em que o português é a língua oficial. A língua é uma realidade dinâmica, que tem sofrido muitas alterações, através dos tempos, e estes momentos de mudança são incontornáveis e naturalmente contestáveis.
De facto, sabemos que as reformas ortográficas são sempre alvo de alguma oposição. Em 1911, ocorreu a primeira reforma ortográfica em Portugal, que não foi extensível ao Brasil, verificando-se avanços e recuos por parte da Academia Brasileira de Letras. Em Portugal, nessa altura, alguns dos nossos escritores contestaram essa alteração na ortografia. Teixeira de Pascoaes, em A Águia, escrevia “Na palavra lagryma, (...) a forma da y é lacrymal; estabelece (...) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio... Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal.”
Fernando Pessoa, através do semi-heterónimo Bernardo Soares, em O Livro do Desassossego, escreveu “Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portugueza. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse”.
Como Pessoa, “também a minha pátria é a língua portuguesa”. Atualmente, o que me entristece são os erros de sintaxe, de concordância, de pontuação, por exemplo em textos das redes sociais, e o Acordo Ortográfico nada tem a ver com isso. A língua portuguesa é património de todos nós e continuar a ser usada por 240 milhões de falantes é algo que temos de assegurar, porque o nosso país só tem a ganhar com isso. Que se façam pequenas retificações em palavras que não necessitavam alteração… De resto, os alunos já realizaram aprendizagens com o AO e a comunicação social também deveria cumprir a Lei, porque tem responsabilidades neste sentido!
A língua é um dos nossos maiores patrimónios. Que obras é que entendem como fundamentais serem lidas por todos?
Temos excelentes escritores contemporâneos, mas recomendo vivamente, para todos e sem carácter de obrigatoriedade curricular, a leitura de Os Maias, de Eça de Queirós, e de Memorial do Convento, de José Saramago.